quarta-feira, janeiro 20, 2010

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O PUTO (parte VI - o jovem)

"És tão novo para sofrer de amor, filho" - dizia-lhe constantemente a mãe. Essa afirmação parecia-lhe sempre condescendente. Compreendia a preocupação materna. Alegrava-se até com essa preocupação. Mas não acreditava nessa limitação etária para o sofrimento. Pelo menos para o sofrimento de amor.
Tinha-a conhecido por acaso no final de uma noite boémica com os amigos de escola. Era nessa altura um miudo. Não um puto. Um miudo. Por momentos tinha pensado que a beleza daquela figura feminina era apenas produto dos multiplos brindes de Monte Velho feitos durante o jantar. Não seria novidade para ele ou para os seus colegas ter os sentidos baralhados nessas noites de folia. Muitas tinham sido as vezes em que jurara ter visto o cheiro a pão acabado de fazer, ou ter sentido na pele o gosto a castanhas assadas que aquela vendedora sem expressão pregava na praça. Mas a confusão de sentidos naquela noite era diferente. Não tinha visto o cheiro da rapariga, nem ouvido os seus caracois. Tinha-se apaixonado. A confusão de sentidos, sentimentos e pensamentos tinha sido tão grande que nem se tinha apercebido do momento em que os seus labios tocaram nos dela. Nem tão pouco sabia que palavras haviam sido trocadas. Que olhares haviam traído a sua timidez. Certo é que amava. E a paixão deixara de estar aprisionada no seu peito e havia desflorado, transbordando atrapalhadamente. Hoje, passados quatro anos desde o despertar desse amor, o jovem sabe que cometeu vários erros. Não haviam sido trocados nomes, nem telefones ou moradas. Aquela deusa de caracois negros havia desaparecido da sua vida tão repentinamente como havia aparecido. Não haveria mais nenhum contacto durante esses quatro anos. Apenas suspiros. As trivialidades do dia-a-dia tinham para ele a mesma intensidade residual que as grandes catastrofes têm para os deuses que as orquestram. Nada lhe despertava a atenção. Tudo era banal e cinzento. Apenas a esperança de ver o cheiro daqueles caracois negros no meio da confusão de cheiros citadinos alimentava os seus dias. E foi no meio dessa ausencia de sentidos que o jovem se apercebeu da presença da folha. Enquanto outros se admiravam com a teimosia daquela pequena folha, o jovem olhava para aquele cenário sem transparecer qualquer emoção. Não lhe parecia obra demoniaca, ou tão pouco a vanguarda de um movimento revolucionário anti-outonal. Apenas se admirava pela forma como velha e folha pareciam se interrogar. Chegou-lhe ao nariz o cheiro intenso a teimosia que emanava daquela estranha relação entre folha e velha. E assustou-se. Aquele cheiro a teimosia era-lhe terrivelmente familiar.

...continua