O ChatoHavia uma pequena ruela que sempre me interesou.
Não é que fosse bonita, ou monumental. Na realidade, era uma rua estreita, sem qualquer tipo de chamativo. Não tinha grandes casas em redor, nenhum palacete, nem sequer uma fachada digna desse nome.
Mas interessava-me a forma como se abria abruptamente a meio de uma estrada que conhecia tão bem.
Costumava passar de autocarro em frente a essa ruela todos os dias. Algumas vezes até tinha lá passado a pé. Mas nunca a tinha descido. Não sabia o que me esperava "lá em baixo". Não sabia se tinha saída. Não sabia se lá morava alguém.
Conhecia apenas o apelo que ela murmurava. A principio suave, quase imperceptível. Como uma ideia que estando lá, teima em não se revelar.
Com o tempo foi crescendo. Foi-se tornado uma necessidade. Não sei quando se tornou uma obsessão. Sei que mesmo tendo uma urgencia em descobrir o que essa ruela escondia, teimava em não descê-la. Teimava em contentar-me com o simples mistério. Penso que houve até alturas em que achei que a sua beleza residia nesse mistério.
De tal forma que passei a ter medo de a descer. Aquela simples ruela, passou a ter sobre mim um poder que não pensei possível sequer a um ser humano. Um fascínio, e uma atração que eram incomuns a mim. À minha maneira de ser. Como uma mulher que, de tão fabulosa, de tão magnífica, nem se quer se põe a hipotese de olhar mais que o necessário para se aperceber da sua presença.
Esta teimosia, esta obcessão, ocupou alguns anos da minha meninice. Não havia dia em que não imaginasse as maravilhas que essa ruela esconderia.
Um dia, nem sequer consigo precisar o ano, ou sequer se ainda era menino ou já adolescente, vi uma senhora descer a ruela. Era uma velha, típica daquela zona. Vestida de preto, com um lenço na cabeça. Mas não foi a velha que me despertou atenção. Foi a forma descontraída e quotidiana que as suas ancas tomavam ao descer a ruela. E então pensei, porque não? Porque não haveria eu de gingar o corpo na mesma forma descontraída e quotidiana?
Então, sem grande esforço, ou sem grande sentimento de coragem, ou desinibição, comecei a descer. A forma como o meu corpo baloiçava daria a entender que fazia algo a que estava habituado. Nada na minha maneira de estar, andar ou olhar, denunciava ser aquela a primeira vez que percorria uma rua que me fascinava há tanto tempo. Alias, parecia (pareceu-me) que fazia o simples caminho para casa. Era como se estivesse a fazer algo a que estava predestinado a fazer. Ou como se aquela fosse para mim apenas mais uma simples ruela.
Nem sequer tomei atenção às casas que ladeavam a ruela. Nem ao seu chão empedrado. era como se o importante não fosse a ruela mas sim o caminhar nela.
Em pouco tempo cheguei ao fim. E o que aquela simples ruela descortinou foi algo de fantástico. Um pequeno aglomerado de casa, três, quatro no máximo, compunham um bairro de pescadores. Frente às casas, duas mesas sob um tosco telhado de zinco. Tinha descoberto quem sabe o último reducto daquilo que em tempos tinha sido a minha cidade. Uma cidade de pescadores. Uma alegria imensa cresceu em mim. Não só tinha transposto a barreira da ruela, como tinha encontrado algo de maravilhoso.
Nos dias seguintes, não voltei a descer a ruela. Hoje, quando lá passo, é apenas uma rua como tantas da minha cidade.