sábado, março 24, 2007

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O PUTO (parte V - o cantoneiro)

As Gerberas que haviam desflorado no jardim do palacete municipal mantinham todo o seu esplendor, apesar do rigor Outonal. Sempre que passava defronte do palacete, o cantoneiro da Câmara Municipal deixava a sua mente divagar sempre no mesmo sentido. O seu desejo de ser Jardineiro, de plantar, cuidar e ver crescer flores e plantas era tão grande, que não hesitou em aceitar aquele cargo, mesmo apesar da miséria mensal que recebia.
No inicio ainda acreditava que a condição de cantoneiro poderia ser o trampolim para a tão almejada tarefa de artista de jardim. Mas os anos haviam passado (já mais de vinte) e o trampolim teimava em não o catapultar. Os seus amigos (que entretanto haviam desaparecido na senda dos seus proprios sonhos e profissões) haviam-lhe dito que a diferença tambem não poderia ser assim tanta. Ao fim e ao cabo, trabalhava em jardins, lidava com plantas. Mas era (e na mente de alguns, poucos, puristas ainda é) do conhecimente geral que havia uma grande diferença entre cuidar e criar um jardim. O cantoneiro sentia-se, desde o nascer ao pôr do Sol, como um pintor a quem tinham atribuido a tarefa de guarda de galeria. cuidava de jardins, é certo. Estava diáriamente rodeado das mais belas criações florais da natureza. Mas a sua vontade artistica de criação não era, nem de perto, atendida.
Assim, tinha passado a encarar a sua profissão não como um trampolim, mas como um meio de subsistência. E aos poucos, passara a olhar para as flores e as folhas como uma simples tarefa. A excepção dava-se quando passava defronte do palacete municipal e deixava que a sua mente rebuscasse o sonho de ser jardineiro. Aquele jardim não estava apenas bem tratado. Estava realmente bem planeado. Era uma rara obra artistica, milimétricamente concebida por alguem que certamente deveria receber um premio. Mas a frustração do cantoneiro era tão grande, que toldava-lhe o raciocinio. E passara a odiar o artista responsável por aquela obra prima, sem mesmo o conhecer.
Enquanto a sua mente divagava olhando para as Gerberas, não se apercebeu que alguem se aproximara do canteiro. Quando a voz doce e colorida chegou aos seus ouvidos, duvidou se não seriam as proprias gereberas que lhe sussuravam ao ouvido. E respondeu automáticamente e dirigindo-se ao canteiro, que sim, gostava muito de flores e de jardins, e que sim, sonhava em ser jardineiro. Quando se apercebeu que quem lhe falava era uma mulher de jardineiras verdes e ancinho na mão, assustou-se. Julgou alucinar e tratar-se da mãe Primavera personificada, mas logo apercebeu-se de que era bem real aquela figura. Assustado e envergonhado por ter, tão facilmente, aberto a torneira dos seus pensamentos perante um estranha, apressou-se a alegar uma pressa que não tinha e abandonou o jardim. Nos dias seguintes, não voltou a passar defronte do jardim do palacete municipal, e tinha conseguido não pensar na senhora das jardineiras verdes. Mas aquela aparição de uma folha solitária que recusava-se a seguir o seu destino, abalou profundamente a ordem de ideias com que diariamente se apresentava ao mundo. E assim, o pensamento de cantoneira transformara-se em pensamento de poeta enamorado. Pensava unicamente na senhora das jardineiras verdes e a necessidade de a rever crescia no seu intimo, abudado pela persistência arrogante de uma simples folha. Quando foi intimado pela situação a lançar de sua justiça, o habito ou a vergonha impediram-no de verbalizar o que lhe ia na alma. E assim, para a história ficou o comentário de cantoneiro municipal preocupado com a ordem estabelecida no que às folhas caducas diz respeito.
continua...

segunda-feira, março 12, 2007

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O PUTO (parte IV - a vendedora de castanhas)

Quando saiu da igreja nem queria acreditar no que tinha pela frente. Tinham passado mais de vinte anos desde que se tinham cruzado pela última vez, mas estava certa de que era ele! Não poderia estar enganada. A barba estava mais grisalha, é certo. O vestuário era mais formal, mas era ele, tão certo como uma dúzia equivaler a doze.
Atravessou quase a flutuar o adro de marmore polido da igreja matriz na esperança de ser reconhecida. Talves tivesse sido pelas rugas de expressão que o tempo tratou de ir acumulando, ou o desconfortável mas digno vestido de Domingo, o certo é que não encontrou o reconhecimento pretendido na expressão daquele homem alto e bem vestido. Ainda tentou esboçar uma réplica daquele sorriso adolescente que costumava fazer os rapazes suspirar, mas tomou consciência do ridículo desse sorriso numa face já muito fustigada pelo tempo e pela vida, e retomou o seu ar desconfortável mas digno de Domingo.

Não sabe dizer se desistiu ou se simplesmente ficou sem forças para contrariar o hábito de se dirigir imediatamente para casa após a missa. O certo é que quando retomou a consciência de si mesma e do resto do seu mundo, estava já sentada à mesa, caneca de café na mão, liberta do desconfortável mas digno vestido de Domingo. Há já alguns anos que a sua farda do dia-a-dia se tinha afeiçoado ao seu corpo. Tinha-se tornado alias mais que uma farda, era agora a sua pele. A sua identidade. Talvez por isso, ultimamente tenha tido a sensação de que vivia duas vidas. Uma durante práticamente toda a semana. Outra aos Domingos de manhã, quando vestia aquele desconfortável mas digno vestido. Talvez tambem seja por isso que na confissão semanal a que estava mais que habituada, não fosse capaz de relatar os episódios da sua vida quotidiana. Sentia que se o fizesse estaria a cometer uma inconfidência sobre outra pessoa, ou a meter a foice em seara alheia. Coisa que, no dia-a-dia e em relação aos seus clientes, não tinha pejo nenhum em fazer.
Aquele reencontro parcial com um homem que a havia marcado tanto, quebrou uma rotina diária de alheamento de si mesma. Pela primeira vez desde há muitos anos tomou consciência de que era mulher. Já tinha como um dado adquirido e transversal a toda a cidade o haver apenas dois tipos de relação: a relação vendedora de castanhas / clientes e a relação devota / padre. Esta dicotomia de relações era tão evidente, tão fortemente vincada que não era mais uma mesma pessoa que mantinha dois tipos de relacionamento, mas dois tipos de relacionamento mantidos por duas pessoas diferentes. Aquele vislumbre de um passado remoto, em que havia na sua vida lugar para outro tipo de relacionamento com os outros abalou verdadeiramente a sua rotina. E a imagem daquele homem de barba grisalha manteve-se cravada na sua memória em todos os momentos das semanas que se seguiram. Quando vendia castanhas, pensava nele e por vezes enganava-se a contar as duzias. Quando se confessava, tinha que se esforçar para não contar ao seu interlocutor nada que pudesse denunciar aquilo em que realmente pensava.
Tinha passado quatro anos nesta vida tripla, em que no dia-a-dia era uma vendedora de castanhas, ao domingo uma devota, e quer numa ocasião quer noutra apenas o resultado de uma época em que tinha sido feliz.
Agora, confrontada por uma anomalia natural, por uma insitência herculea de uma pequena folha que teimava em contrariar a ordem natural das coisas, pensava que talvez fosse altura de despir para sempre o desconfortável mas digno vestido de Domingo. E talvez esse pensamento fosse tão forte mas tão estranho à sua maneira de ser que apenas verbalizava a sua preocupação cristã com que todas as aberrações devem ser tratadas.
continua...