terça-feira, março 16, 2010

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MATA-ME COBARDE!

NÃO QUERES QUE TE PRENDAM, EU SEI.
AINDA TENS MUITO PARA FAZER,
MUITO PARA AMAR.

MAS SOU EU QUE TE PEÇO:
MATA-ME COBARDE!

PODES DIZER QUE TO PEDI.
PODES DIZER QUE TE ATAQUEI.
NÃO QUERO SABER
SE APROVAS OU NAO.

ISTO SOU EU A IMPLORAR
MATA-ME COBARDE!

PODEM DEIXAR O MEU CORPO
ABANDONADO NUMA RAVINA.
ESCREVER "DESISTENTE" NA LAPIDE
QUE MARCAR A MINHA ETERNIDADE.

PODEM ATE DEIXAR-ME VIVO,
MAS EU PEÇO,
EU IMPLORO
ROGO AOS DEUSES E AOS HOMENS:

MATA-ME COBARDE!

quarta-feira, janeiro 20, 2010

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O PUTO (parte VI - o jovem)

"És tão novo para sofrer de amor, filho" - dizia-lhe constantemente a mãe. Essa afirmação parecia-lhe sempre condescendente. Compreendia a preocupação materna. Alegrava-se até com essa preocupação. Mas não acreditava nessa limitação etária para o sofrimento. Pelo menos para o sofrimento de amor.
Tinha-a conhecido por acaso no final de uma noite boémica com os amigos de escola. Era nessa altura um miudo. Não um puto. Um miudo. Por momentos tinha pensado que a beleza daquela figura feminina era apenas produto dos multiplos brindes de Monte Velho feitos durante o jantar. Não seria novidade para ele ou para os seus colegas ter os sentidos baralhados nessas noites de folia. Muitas tinham sido as vezes em que jurara ter visto o cheiro a pão acabado de fazer, ou ter sentido na pele o gosto a castanhas assadas que aquela vendedora sem expressão pregava na praça. Mas a confusão de sentidos naquela noite era diferente. Não tinha visto o cheiro da rapariga, nem ouvido os seus caracois. Tinha-se apaixonado. A confusão de sentidos, sentimentos e pensamentos tinha sido tão grande que nem se tinha apercebido do momento em que os seus labios tocaram nos dela. Nem tão pouco sabia que palavras haviam sido trocadas. Que olhares haviam traído a sua timidez. Certo é que amava. E a paixão deixara de estar aprisionada no seu peito e havia desflorado, transbordando atrapalhadamente. Hoje, passados quatro anos desde o despertar desse amor, o jovem sabe que cometeu vários erros. Não haviam sido trocados nomes, nem telefones ou moradas. Aquela deusa de caracois negros havia desaparecido da sua vida tão repentinamente como havia aparecido. Não haveria mais nenhum contacto durante esses quatro anos. Apenas suspiros. As trivialidades do dia-a-dia tinham para ele a mesma intensidade residual que as grandes catastrofes têm para os deuses que as orquestram. Nada lhe despertava a atenção. Tudo era banal e cinzento. Apenas a esperança de ver o cheiro daqueles caracois negros no meio da confusão de cheiros citadinos alimentava os seus dias. E foi no meio dessa ausencia de sentidos que o jovem se apercebeu da presença da folha. Enquanto outros se admiravam com a teimosia daquela pequena folha, o jovem olhava para aquele cenário sem transparecer qualquer emoção. Não lhe parecia obra demoniaca, ou tão pouco a vanguarda de um movimento revolucionário anti-outonal. Apenas se admirava pela forma como velha e folha pareciam se interrogar. Chegou-lhe ao nariz o cheiro intenso a teimosia que emanava daquela estranha relação entre folha e velha. E assustou-se. Aquele cheiro a teimosia era-lhe terrivelmente familiar.

...continua

sábado, março 24, 2007

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O PUTO (parte V - o cantoneiro)

As Gerberas que haviam desflorado no jardim do palacete municipal mantinham todo o seu esplendor, apesar do rigor Outonal. Sempre que passava defronte do palacete, o cantoneiro da Câmara Municipal deixava a sua mente divagar sempre no mesmo sentido. O seu desejo de ser Jardineiro, de plantar, cuidar e ver crescer flores e plantas era tão grande, que não hesitou em aceitar aquele cargo, mesmo apesar da miséria mensal que recebia.
No inicio ainda acreditava que a condição de cantoneiro poderia ser o trampolim para a tão almejada tarefa de artista de jardim. Mas os anos haviam passado (já mais de vinte) e o trampolim teimava em não o catapultar. Os seus amigos (que entretanto haviam desaparecido na senda dos seus proprios sonhos e profissões) haviam-lhe dito que a diferença tambem não poderia ser assim tanta. Ao fim e ao cabo, trabalhava em jardins, lidava com plantas. Mas era (e na mente de alguns, poucos, puristas ainda é) do conhecimente geral que havia uma grande diferença entre cuidar e criar um jardim. O cantoneiro sentia-se, desde o nascer ao pôr do Sol, como um pintor a quem tinham atribuido a tarefa de guarda de galeria. cuidava de jardins, é certo. Estava diáriamente rodeado das mais belas criações florais da natureza. Mas a sua vontade artistica de criação não era, nem de perto, atendida.
Assim, tinha passado a encarar a sua profissão não como um trampolim, mas como um meio de subsistência. E aos poucos, passara a olhar para as flores e as folhas como uma simples tarefa. A excepção dava-se quando passava defronte do palacete municipal e deixava que a sua mente rebuscasse o sonho de ser jardineiro. Aquele jardim não estava apenas bem tratado. Estava realmente bem planeado. Era uma rara obra artistica, milimétricamente concebida por alguem que certamente deveria receber um premio. Mas a frustração do cantoneiro era tão grande, que toldava-lhe o raciocinio. E passara a odiar o artista responsável por aquela obra prima, sem mesmo o conhecer.
Enquanto a sua mente divagava olhando para as Gerberas, não se apercebeu que alguem se aproximara do canteiro. Quando a voz doce e colorida chegou aos seus ouvidos, duvidou se não seriam as proprias gereberas que lhe sussuravam ao ouvido. E respondeu automáticamente e dirigindo-se ao canteiro, que sim, gostava muito de flores e de jardins, e que sim, sonhava em ser jardineiro. Quando se apercebeu que quem lhe falava era uma mulher de jardineiras verdes e ancinho na mão, assustou-se. Julgou alucinar e tratar-se da mãe Primavera personificada, mas logo apercebeu-se de que era bem real aquela figura. Assustado e envergonhado por ter, tão facilmente, aberto a torneira dos seus pensamentos perante um estranha, apressou-se a alegar uma pressa que não tinha e abandonou o jardim. Nos dias seguintes, não voltou a passar defronte do jardim do palacete municipal, e tinha conseguido não pensar na senhora das jardineiras verdes. Mas aquela aparição de uma folha solitária que recusava-se a seguir o seu destino, abalou profundamente a ordem de ideias com que diariamente se apresentava ao mundo. E assim, o pensamento de cantoneira transformara-se em pensamento de poeta enamorado. Pensava unicamente na senhora das jardineiras verdes e a necessidade de a rever crescia no seu intimo, abudado pela persistência arrogante de uma simples folha. Quando foi intimado pela situação a lançar de sua justiça, o habito ou a vergonha impediram-no de verbalizar o que lhe ia na alma. E assim, para a história ficou o comentário de cantoneiro municipal preocupado com a ordem estabelecida no que às folhas caducas diz respeito.
continua...

segunda-feira, março 12, 2007

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O PUTO (parte IV - a vendedora de castanhas)

Quando saiu da igreja nem queria acreditar no que tinha pela frente. Tinham passado mais de vinte anos desde que se tinham cruzado pela última vez, mas estava certa de que era ele! Não poderia estar enganada. A barba estava mais grisalha, é certo. O vestuário era mais formal, mas era ele, tão certo como uma dúzia equivaler a doze.
Atravessou quase a flutuar o adro de marmore polido da igreja matriz na esperança de ser reconhecida. Talves tivesse sido pelas rugas de expressão que o tempo tratou de ir acumulando, ou o desconfortável mas digno vestido de Domingo, o certo é que não encontrou o reconhecimento pretendido na expressão daquele homem alto e bem vestido. Ainda tentou esboçar uma réplica daquele sorriso adolescente que costumava fazer os rapazes suspirar, mas tomou consciência do ridículo desse sorriso numa face já muito fustigada pelo tempo e pela vida, e retomou o seu ar desconfortável mas digno de Domingo.

Não sabe dizer se desistiu ou se simplesmente ficou sem forças para contrariar o hábito de se dirigir imediatamente para casa após a missa. O certo é que quando retomou a consciência de si mesma e do resto do seu mundo, estava já sentada à mesa, caneca de café na mão, liberta do desconfortável mas digno vestido de Domingo. Há já alguns anos que a sua farda do dia-a-dia se tinha afeiçoado ao seu corpo. Tinha-se tornado alias mais que uma farda, era agora a sua pele. A sua identidade. Talvez por isso, ultimamente tenha tido a sensação de que vivia duas vidas. Uma durante práticamente toda a semana. Outra aos Domingos de manhã, quando vestia aquele desconfortável mas digno vestido. Talvez tambem seja por isso que na confissão semanal a que estava mais que habituada, não fosse capaz de relatar os episódios da sua vida quotidiana. Sentia que se o fizesse estaria a cometer uma inconfidência sobre outra pessoa, ou a meter a foice em seara alheia. Coisa que, no dia-a-dia e em relação aos seus clientes, não tinha pejo nenhum em fazer.
Aquele reencontro parcial com um homem que a havia marcado tanto, quebrou uma rotina diária de alheamento de si mesma. Pela primeira vez desde há muitos anos tomou consciência de que era mulher. Já tinha como um dado adquirido e transversal a toda a cidade o haver apenas dois tipos de relação: a relação vendedora de castanhas / clientes e a relação devota / padre. Esta dicotomia de relações era tão evidente, tão fortemente vincada que não era mais uma mesma pessoa que mantinha dois tipos de relacionamento, mas dois tipos de relacionamento mantidos por duas pessoas diferentes. Aquele vislumbre de um passado remoto, em que havia na sua vida lugar para outro tipo de relacionamento com os outros abalou verdadeiramente a sua rotina. E a imagem daquele homem de barba grisalha manteve-se cravada na sua memória em todos os momentos das semanas que se seguiram. Quando vendia castanhas, pensava nele e por vezes enganava-se a contar as duzias. Quando se confessava, tinha que se esforçar para não contar ao seu interlocutor nada que pudesse denunciar aquilo em que realmente pensava.
Tinha passado quatro anos nesta vida tripla, em que no dia-a-dia era uma vendedora de castanhas, ao domingo uma devota, e quer numa ocasião quer noutra apenas o resultado de uma época em que tinha sido feliz.
Agora, confrontada por uma anomalia natural, por uma insitência herculea de uma pequena folha que teimava em contrariar a ordem natural das coisas, pensava que talvez fosse altura de despir para sempre o desconfortável mas digno vestido de Domingo. E talvez esse pensamento fosse tão forte mas tão estranho à sua maneira de ser que apenas verbalizava a sua preocupação cristã com que todas as aberrações devem ser tratadas.
continua...



sexta-feira, fevereiro 16, 2007

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O Puto (parte III - a praça)

De todas as histórias de encontros inesperados que tomaram lugar na praça, aquela ficará profundamente marcada nos aneis de crescimento cambial da àrvore monumental. Em nenhum relato, lenda, provérbio, ou simples diz que disse, consta um encontro de semelhante dimensão. Aquele primeiro olhar entre velha e folha assumiu, quer para um quer para outro o mesmo espanto e admiração que a primeira troca de olhares entre David e Golias.

O estrondo cósmico causado pela tomada de consciência da existência um do outro abalou não só os pensamentos da velha e as convicções da folha, mas tornou igualmente visível a todos a odisseia aventureirística da folha da àrvore monumental. A primeira vendora de castanhas a estender o seu arraial de venda ficou boquiaberta, pensando se não seria aquele um sinal divino advertindo-a para uma mais que certa baixa na producção de castanhas para os próximos dez anos. O varredor municipal, deixou o vento espalhar as folhas mortas que varria, pensando que a Câmara Municipal não teria outro remédio senão despedi-lo caso aquela teimosia de uma folha se tornasse num movimento de massas. As crianças que corriam calçada abaixo, pararam pensando que talves as suas orações nocturnas tivessem sido atendidas e que a partir desse dia, os verões passariam finalmente a ser eternos.
Tal tomada de consciencia da aventura e da ousadia da folha fez com que um aglomerado considerável de pessoas se concentrasse à volta do tronco da àrvore monumental. Na verdade, não passavam de sete pessoas. O varredor, a velha, a vendedora de castanhas, três crianças e um jovem que se mantinha ligeiramente distante. Contudo, este aglomerado de pessoas incomodavam a àrvore monumental. Estava habituada ao passar constante de pessoas, mas ter assim , de uma assentada, tantos pares de olhos centrados nela, pareciam diminuí-la. Ainda por cima, não era o seu porte que chamava a atenção. Não eram os seus grossos ramos, ou o seu enorme diâmetro. nem tão pouco a sua respeitável idade cheia de sapiciência. Era uma simples folha, que há muito deveria ter rumado ao seu destino traçado que puxava aqueles olhos. Era indigno. Era ultrajante! E sobretudo, não era justo!
O varredor sugeriu que se avisasse a Câmara Municipal afim de pôr termo àquela ousadia revolucionária. A vendedora de castanhas opinou no sentido de se contactar o pároco mais próximo para que fossem encomendadas rezas e procissões que acalmassem a ira divina. As crianças, animadas, sugeriram que se tentasse colar as folhas mortas nos restantes ramos da àrvore, ressuscitanto assim o Verão. A velha calou-se. Não que lhe faltassem as ideias, mas uma era tão persistente quanto assustadora. Não saberia dizer porquê, mas tinha a ideia de que qual quer que fosse o destino daquela folha, marcaria não só o seu próprio destino, como desvendaria também um qualquer terrivel segredo. A àrvore disse de sua justiça ao balançar os seus ramos vigorosamente ao sabor do vento, na tentativa vã de sacudir aquela praga obstinada. O jovem manteve-se calado e afastado, olhando curiosamente ora para a folha ora para a velha.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

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O PUTO (parte II - a velha)

Havia 83 anos que a velha habitava aquele rés-do-chão. Havia 83 anos que os outonos precediam os Invernos e enterravam os Verões. Apenas dois Outonos haviam sido diferentes nesses 83 anos.
Um, o fatídico Outono de há 4 anos, tinha começado fulgurante. O Sol de Verão continuava a brilhar, pintando o rio e as folhas de dourado. As crianças, corriam calçada abaixo com as suas pastas de escola novinhas. Quadradas, quase todas, enormes para o tamanho dos donos, algumas. O ar, contudo, ainda não estava aromatizado para a ocasião. As vendedoras de castanhas ainda tinham os arraiais guardados. Cheirava a rio, tal como se o tempo tivesse parado no Verão. A velha era, nesse Outono, ainda alegre. Os próximos 4 anos não trariam alterações fisicas significativas. Contudo, havia algo que ainda não se tinha manifestado na cara da velha. Uma ruga de expressão, no canto do olho direito, ainda não se tinha manifestado.

O quotidiano da velha era, já o haviamos dito, alegre. Esta alegria resiadia principalmente numa dessas crianças que corriam calçada abaixo. Não era sua a criança. Não era do seu sangue como se diz na cidade. Mas aquele puto tinha a mania, já à três anos (metade da sua existência) de chamar a velha de avó. E trazia-lhe, todos os dias, um desenho. Ora o Sol, ora a Praia, ora um cão. Sempre desenhos feitos de propósito para a sua avó. A velha em troco, dava-lhe um caramelo que diáriamente queimava no seu fogão a lenha. Bem sabia a velha que não era o doce que aliciava o puto. Aquela não era uma relação de transacções. Era o afecto, a palavra amiga, o olhar enternecido que animava puto e velha.
Mas esse factídico verão de há 4 anos, traria a desgraça. O puto iria mudar-se com a família para o estrangeiro. A velha sabia que o puto não tinha culpa, mas desgostava-a a forma maravilhada com que ele antecipava a sua aventura. Não queria perder aquela relação. Queria continuar a receber desenhos. Queria continuar a queimar açucar no seu velho fogão a lenha para oferecer um caramelo ao puto. Queria continuar a ter um neto. O desgosto era tão grande, que na última visita do puto a velha "esqueceu-se" de queimar açucar. Desculpou-se dizendo que não tinha lenha. Recebeu amraga e rispidamente a folha dobrada das mãos do puto. Não a abriu, nem nunca a abriria durante esses 4 anos. O puto deixou a velha, destroçado com a sua reação, descendo tristemente a calçada.
Este Outono, que parecia correr triste como os últimos 4, trouxe a outra novidade. A velha tinha passado a odiar os outonos. Lembravam-lhe sempre o puto. E pior, da sua reacção mesquinha e egoista na hora da despedida. era sempre no Outono que pensava em abrir o último desenho, que guardava religiosamente sem nunca o ter aberto. Sempre que essa lembrança a atormentava, passava os dedos pelo olho direito, e apercebia-se da modificação que aí ocorrera. Uma ruga, em forma de lágrima, sulcava-lhe a pele. Cada Outono mais triste, cada Outono mais fundo se cravava a lágrima. Mas este Outono, quando a lembrança do puto a trazia de novo à porta de casa, olhando o fundo da calçada como quem espera por alguém, apercebeu-se que algo estava diferente. Olhou em volta à procura dessa diferença. O jardineiro varria as folhas na praça. A àrvore monumental continuava lá. O Sol estava dourado. O ar não estava ainda aromatizado de acordo com a estação. As vendedoras de castanhas ainda tinham os arraiais guardados. Levou os olhos para o céu à procura, e foi então que reparou. Bem no meio da àrvore monumental da praça, essa que estava já despeida a rigor para a estação, uma única folha resistia ao rigor Outunal. Essa folha, pequena e solitária, parecia olha-la também. essa folha, pequena e solítária, fê-la lembrar uma velha que teimava. Porque teima a folha? pensou a velha. Porque teima a velha? pensava a folha.

continua...

sexta-feira, outubro 27, 2006

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O PUTO (parte I - a folha)

Por um qualquer mistério da natureza, a àrvore monumental da praça mantinha presa a si uma única folha. Todas as outras àrvores estavam já vestidas a rigor para a estação. Mesmo aquela o estava, à primeira vista. Não fosse a teimosia de uma folha, que, agarrando-se não se sabe a quê, teimava em desafiar a ordem milenar da cadência outonal.

Se as pessoas daquela praça tivessem aprendido a conviver com os pequenos acontecimentos que os rodeavam, talvez conseguissem ouvir os murmurios daquela folha, e talvez descobrissem o motivo daquela birra. Mas os Homens, daquela e de outras praças, estavam mais concentrados noutros problemas.
Esta situação indignava a pequena folha. Havia semanas que estava votada à solidão. Havia semanas que tinha visto as suas irmãs desprender-se e cair suavemente na calçada da praça. Diáriamente, tinha assistido ao terror das outras folhas ao serem levadas pela vassoura do cantoneiro. E diáriamente ouvia o chilrear espantado dos passaros e aos lamentos indignados da àrvore monumental.
Para ela, era uma questão de princípio! Ninguem lhe havia perguntado se queria ser uma folha perene ou caduca. Porque havia ela de se submeter a uma lei para a qual não havia sido tida nem achada? Assim, teimava em continuar agarrada aquele ramo, aguentando as fortes rajadas de vento que se sentiam ocasionalmente.
Certa manhã, espantou-se com o olhar intrigado de uma velha. Conhecia-a bem, pois esta morava na casa fronteira ao "seu" ramo. Sabia que era viúva, sabia que tinha como única ocupação esperar por algo à porta de casa. Não falava com ninguem, e raramente desviava o olhar da calçada principal que descia para o rio. Hoje, àquela hora da manhã, ali se encontrava, olhos nos olhos, velha e folha. Uma, que se agarrava a uma àrvore teimando em não cair, a outra que se agarrava àquela calçada, como se daí pudesse vir a salvação do destino geral das coisas. Não eram assim tão diferentes uma da outra.

continua...

quarta-feira, outubro 04, 2006

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Leite a ferver

À medida que o leite ia fervendo no fogão, os vários acontecimentos do dia iam borbulhando na mente de Joana. Tinha sido um dia realmente fora do vulgar. Apesar da maioria desses acontecimentos não terem grande importância, ou melhor grande repercursão na sua vida, outros eram tão distintos, tão importantes, que se assemelhavam à nata que se formava no fervedor. Alias, a expressão "Leite sem nata" que tantas vezes se aplicava na perfeição a Joana, era hoje totalmente sem nexo. A sua vida, num único dia, tinha-se tornado como um leite esquecido ao lume. Aumentando de temperatura, borbulhando, fervendo... Até que, atingindo aquela específica e mágica temperatura de 100 graus(*), começava a estrapolar as fronteiras habitualmente esperadas, vulgo fervedor.
Claro está que Joana teve que, atabalhoadamente, desligar o lume do fogão, pensando se valeria a pena voltar a fazer outra caneca de leite ou se alteraria a sua rotina bebendo leite frio.
Pensando nos acontecimentos do dia, decidiu-se por esta última. E admirou-se, ou melhor espantou-se, com o quanto gostava de leite frio.


(*) - Alterar ou não alterar? Tendo em conta os comentários acerca da temperatura a que o leite ferve, ponderei em alterar o texto, mas, tendo em conta a liberdade de alterar realidades que só a escrita criativa permite, dou-me ao luxo de nada alterar. Quaisquer reclamações, é favor remeter para os cientistas, quimicos e afins. Talvez eles tenham a dignidade de alterar as leis naturais...

segunda-feira, outubro 02, 2006

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O Chato

Havia uma pequena ruela que sempre me interesou.
Não é que fosse bonita, ou monumental. Na realidade, era uma rua estreita, sem qualquer tipo de chamativo. Não tinha grandes casas em redor, nenhum palacete, nem sequer uma fachada digna desse nome.
Mas interessava-me a forma como se abria abruptamente a meio de uma estrada que conhecia tão bem.
Costumava passar de autocarro em frente a essa ruela todos os dias. Algumas vezes até tinha lá passado a pé. Mas nunca a tinha descido. Não sabia o que me esperava "lá em baixo". Não sabia se tinha saída. Não sabia se lá morava alguém.
Conhecia apenas o apelo que ela murmurava. A principio suave, quase imperceptível. Como uma ideia que estando lá, teima em não se revelar.
Com o tempo foi crescendo. Foi-se tornado uma necessidade. Não sei quando se tornou uma obsessão. Sei que mesmo tendo uma urgencia em descobrir o que essa ruela escondia, teimava em não descê-la. Teimava em contentar-me com o simples mistério. Penso que houve até alturas em que achei que a sua beleza residia nesse mistério.
De tal forma que passei a ter medo de a descer. Aquela simples ruela, passou a ter sobre mim um poder que não pensei possível sequer a um ser humano. Um fascínio, e uma atração que eram incomuns a mim. À minha maneira de ser. Como uma mulher que, de tão fabulosa, de tão magnífica, nem se quer se põe a hipotese de olhar mais que o necessário para se aperceber da sua presença.
Esta teimosia, esta obcessão, ocupou alguns anos da minha meninice. Não havia dia em que não imaginasse as maravilhas que essa ruela esconderia.

Um dia, nem sequer consigo precisar o ano, ou sequer se ainda era menino ou já adolescente, vi uma senhora descer a ruela. Era uma velha, típica daquela zona. Vestida de preto, com um lenço na cabeça. Mas não foi a velha que me despertou atenção. Foi a forma descontraída e quotidiana que as suas ancas tomavam ao descer a ruela. E então pensei, porque não? Porque não haveria eu de gingar o corpo na mesma forma descontraída e quotidiana?
Então, sem grande esforço, ou sem grande sentimento de coragem, ou desinibição, comecei a descer. A forma como o meu corpo baloiçava daria a entender que fazia algo a que estava habituado. Nada na minha maneira de estar, andar ou olhar, denunciava ser aquela a primeira vez que percorria uma rua que me fascinava há tanto tempo. Alias, parecia (pareceu-me) que fazia o simples caminho para casa. Era como se estivesse a fazer algo a que estava predestinado a fazer. Ou como se aquela fosse para mim apenas mais uma simples ruela.
Nem sequer tomei atenção às casas que ladeavam a ruela. Nem ao seu chão empedrado. era como se o importante não fosse a ruela mas sim o caminhar nela.
Em pouco tempo cheguei ao fim. E o que aquela simples ruela descortinou foi algo de fantástico. Um pequeno aglomerado de casa, três, quatro no máximo, compunham um bairro de pescadores. Frente às casas, duas mesas sob um tosco telhado de zinco. Tinha descoberto quem sabe o último reducto daquilo que em tempos tinha sido a minha cidade. Uma cidade de pescadores. Uma alegria imensa cresceu em mim. Não só tinha transposto a barreira da ruela, como tinha encontrado algo de maravilhoso.

Nos dias seguintes, não voltei a descer a ruela. Hoje, quando lá passo, é apenas uma rua como tantas da minha cidade.
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Nicotina

1999


Não quero voltar a sentir-te,
Não quero ceder.

Disse nunca mais,
E não volto atrás.

Sinto uma vontade
De ceder ao desejo,
De deixar que me leves,
Que me envolvas
No teu abraço.

Mas não vou ceder
Vou ser forte
Para resistir.

Afastar o teu apelo,
Repudiar o teu Chamamento...

Mas sei que não sou capaz.

Sinto-me a cair,
Sinto-me a ceder.

É agora.

Sempre soube
que não podia fugir.

E então cedo
Puxo de um cigarro
Dou um bafo demorado,
E deixo que me envolvas...

Nicotina:

Não vivo sem ti...