quarta-feira, janeiro 17, 2007

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O PUTO (parte II - a velha)

Havia 83 anos que a velha habitava aquele rés-do-chão. Havia 83 anos que os outonos precediam os Invernos e enterravam os Verões. Apenas dois Outonos haviam sido diferentes nesses 83 anos.
Um, o fatídico Outono de há 4 anos, tinha começado fulgurante. O Sol de Verão continuava a brilhar, pintando o rio e as folhas de dourado. As crianças, corriam calçada abaixo com as suas pastas de escola novinhas. Quadradas, quase todas, enormes para o tamanho dos donos, algumas. O ar, contudo, ainda não estava aromatizado para a ocasião. As vendedoras de castanhas ainda tinham os arraiais guardados. Cheirava a rio, tal como se o tempo tivesse parado no Verão. A velha era, nesse Outono, ainda alegre. Os próximos 4 anos não trariam alterações fisicas significativas. Contudo, havia algo que ainda não se tinha manifestado na cara da velha. Uma ruga de expressão, no canto do olho direito, ainda não se tinha manifestado.

O quotidiano da velha era, já o haviamos dito, alegre. Esta alegria resiadia principalmente numa dessas crianças que corriam calçada abaixo. Não era sua a criança. Não era do seu sangue como se diz na cidade. Mas aquele puto tinha a mania, já à três anos (metade da sua existência) de chamar a velha de avó. E trazia-lhe, todos os dias, um desenho. Ora o Sol, ora a Praia, ora um cão. Sempre desenhos feitos de propósito para a sua avó. A velha em troco, dava-lhe um caramelo que diáriamente queimava no seu fogão a lenha. Bem sabia a velha que não era o doce que aliciava o puto. Aquela não era uma relação de transacções. Era o afecto, a palavra amiga, o olhar enternecido que animava puto e velha.
Mas esse factídico verão de há 4 anos, traria a desgraça. O puto iria mudar-se com a família para o estrangeiro. A velha sabia que o puto não tinha culpa, mas desgostava-a a forma maravilhada com que ele antecipava a sua aventura. Não queria perder aquela relação. Queria continuar a receber desenhos. Queria continuar a queimar açucar no seu velho fogão a lenha para oferecer um caramelo ao puto. Queria continuar a ter um neto. O desgosto era tão grande, que na última visita do puto a velha "esqueceu-se" de queimar açucar. Desculpou-se dizendo que não tinha lenha. Recebeu amraga e rispidamente a folha dobrada das mãos do puto. Não a abriu, nem nunca a abriria durante esses 4 anos. O puto deixou a velha, destroçado com a sua reação, descendo tristemente a calçada.
Este Outono, que parecia correr triste como os últimos 4, trouxe a outra novidade. A velha tinha passado a odiar os outonos. Lembravam-lhe sempre o puto. E pior, da sua reacção mesquinha e egoista na hora da despedida. era sempre no Outono que pensava em abrir o último desenho, que guardava religiosamente sem nunca o ter aberto. Sempre que essa lembrança a atormentava, passava os dedos pelo olho direito, e apercebia-se da modificação que aí ocorrera. Uma ruga, em forma de lágrima, sulcava-lhe a pele. Cada Outono mais triste, cada Outono mais fundo se cravava a lágrima. Mas este Outono, quando a lembrança do puto a trazia de novo à porta de casa, olhando o fundo da calçada como quem espera por alguém, apercebeu-se que algo estava diferente. Olhou em volta à procura dessa diferença. O jardineiro varria as folhas na praça. A àrvore monumental continuava lá. O Sol estava dourado. O ar não estava ainda aromatizado de acordo com a estação. As vendedoras de castanhas ainda tinham os arraiais guardados. Levou os olhos para o céu à procura, e foi então que reparou. Bem no meio da àrvore monumental da praça, essa que estava já despeida a rigor para a estação, uma única folha resistia ao rigor Outunal. Essa folha, pequena e solitária, parecia olha-la também. essa folha, pequena e solítária, fê-la lembrar uma velha que teimava. Porque teima a folha? pensou a velha. Porque teima a velha? pensava a folha.

continua...