sexta-feira, fevereiro 16, 2007

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O Puto (parte III - a praça)

De todas as histórias de encontros inesperados que tomaram lugar na praça, aquela ficará profundamente marcada nos aneis de crescimento cambial da àrvore monumental. Em nenhum relato, lenda, provérbio, ou simples diz que disse, consta um encontro de semelhante dimensão. Aquele primeiro olhar entre velha e folha assumiu, quer para um quer para outro o mesmo espanto e admiração que a primeira troca de olhares entre David e Golias.

O estrondo cósmico causado pela tomada de consciência da existência um do outro abalou não só os pensamentos da velha e as convicções da folha, mas tornou igualmente visível a todos a odisseia aventureirística da folha da àrvore monumental. A primeira vendora de castanhas a estender o seu arraial de venda ficou boquiaberta, pensando se não seria aquele um sinal divino advertindo-a para uma mais que certa baixa na producção de castanhas para os próximos dez anos. O varredor municipal, deixou o vento espalhar as folhas mortas que varria, pensando que a Câmara Municipal não teria outro remédio senão despedi-lo caso aquela teimosia de uma folha se tornasse num movimento de massas. As crianças que corriam calçada abaixo, pararam pensando que talves as suas orações nocturnas tivessem sido atendidas e que a partir desse dia, os verões passariam finalmente a ser eternos.
Tal tomada de consciencia da aventura e da ousadia da folha fez com que um aglomerado considerável de pessoas se concentrasse à volta do tronco da àrvore monumental. Na verdade, não passavam de sete pessoas. O varredor, a velha, a vendedora de castanhas, três crianças e um jovem que se mantinha ligeiramente distante. Contudo, este aglomerado de pessoas incomodavam a àrvore monumental. Estava habituada ao passar constante de pessoas, mas ter assim , de uma assentada, tantos pares de olhos centrados nela, pareciam diminuí-la. Ainda por cima, não era o seu porte que chamava a atenção. Não eram os seus grossos ramos, ou o seu enorme diâmetro. nem tão pouco a sua respeitável idade cheia de sapiciência. Era uma simples folha, que há muito deveria ter rumado ao seu destino traçado que puxava aqueles olhos. Era indigno. Era ultrajante! E sobretudo, não era justo!
O varredor sugeriu que se avisasse a Câmara Municipal afim de pôr termo àquela ousadia revolucionária. A vendedora de castanhas opinou no sentido de se contactar o pároco mais próximo para que fossem encomendadas rezas e procissões que acalmassem a ira divina. As crianças, animadas, sugeriram que se tentasse colar as folhas mortas nos restantes ramos da àrvore, ressuscitanto assim o Verão. A velha calou-se. Não que lhe faltassem as ideias, mas uma era tão persistente quanto assustadora. Não saberia dizer porquê, mas tinha a ideia de que qual quer que fosse o destino daquela folha, marcaria não só o seu próprio destino, como desvendaria também um qualquer terrivel segredo. A àrvore disse de sua justiça ao balançar os seus ramos vigorosamente ao sabor do vento, na tentativa vã de sacudir aquela praga obstinada. O jovem manteve-se calado e afastado, olhando curiosamente ora para a folha ora para a velha.