segunda-feira, março 12, 2007

O PUTO (parte IV - a vendedora de castanhas)

Quando saiu da igreja nem queria acreditar no que tinha pela frente. Tinham passado mais de vinte anos desde que se tinham cruzado pela última vez, mas estava certa de que era ele! Não poderia estar enganada. A barba estava mais grisalha, é certo. O vestuário era mais formal, mas era ele, tão certo como uma dúzia equivaler a doze.
Atravessou quase a flutuar o adro de marmore polido da igreja matriz na esperança de ser reconhecida. Talves tivesse sido pelas rugas de expressão que o tempo tratou de ir acumulando, ou o desconfortável mas digno vestido de Domingo, o certo é que não encontrou o reconhecimento pretendido na expressão daquele homem alto e bem vestido. Ainda tentou esboçar uma réplica daquele sorriso adolescente que costumava fazer os rapazes suspirar, mas tomou consciência do ridículo desse sorriso numa face já muito fustigada pelo tempo e pela vida, e retomou o seu ar desconfortável mas digno de Domingo.

Não sabe dizer se desistiu ou se simplesmente ficou sem forças para contrariar o hábito de se dirigir imediatamente para casa após a missa. O certo é que quando retomou a consciência de si mesma e do resto do seu mundo, estava já sentada à mesa, caneca de café na mão, liberta do desconfortável mas digno vestido de Domingo. Há já alguns anos que a sua farda do dia-a-dia se tinha afeiçoado ao seu corpo. Tinha-se tornado alias mais que uma farda, era agora a sua pele. A sua identidade. Talvez por isso, ultimamente tenha tido a sensação de que vivia duas vidas. Uma durante práticamente toda a semana. Outra aos Domingos de manhã, quando vestia aquele desconfortável mas digno vestido. Talvez tambem seja por isso que na confissão semanal a que estava mais que habituada, não fosse capaz de relatar os episódios da sua vida quotidiana. Sentia que se o fizesse estaria a cometer uma inconfidência sobre outra pessoa, ou a meter a foice em seara alheia. Coisa que, no dia-a-dia e em relação aos seus clientes, não tinha pejo nenhum em fazer.
Aquele reencontro parcial com um homem que a havia marcado tanto, quebrou uma rotina diária de alheamento de si mesma. Pela primeira vez desde há muitos anos tomou consciência de que era mulher. Já tinha como um dado adquirido e transversal a toda a cidade o haver apenas dois tipos de relação: a relação vendedora de castanhas / clientes e a relação devota / padre. Esta dicotomia de relações era tão evidente, tão fortemente vincada que não era mais uma mesma pessoa que mantinha dois tipos de relacionamento, mas dois tipos de relacionamento mantidos por duas pessoas diferentes. Aquele vislumbre de um passado remoto, em que havia na sua vida lugar para outro tipo de relacionamento com os outros abalou verdadeiramente a sua rotina. E a imagem daquele homem de barba grisalha manteve-se cravada na sua memória em todos os momentos das semanas que se seguiram. Quando vendia castanhas, pensava nele e por vezes enganava-se a contar as duzias. Quando se confessava, tinha que se esforçar para não contar ao seu interlocutor nada que pudesse denunciar aquilo em que realmente pensava.
Tinha passado quatro anos nesta vida tripla, em que no dia-a-dia era uma vendedora de castanhas, ao domingo uma devota, e quer numa ocasião quer noutra apenas o resultado de uma época em que tinha sido feliz.
Agora, confrontada por uma anomalia natural, por uma insitência herculea de uma pequena folha que teimava em contrariar a ordem natural das coisas, pensava que talvez fosse altura de despir para sempre o desconfortável mas digno vestido de Domingo. E talvez esse pensamento fosse tão forte mas tão estranho à sua maneira de ser que apenas verbalizava a sua preocupação cristã com que todas as aberrações devem ser tratadas.
continua...



1 comentário:

Anónimo disse...

como e bom despir, finalmente, o vestido desconfortavel mas digno de domingo...

gosto da tua velha, gosto da tua folha.
aguardo ansiosamente pela parte V, para poder fumar mais um cigarro enquanto me perco na historia ;)