sexta-feira, outubro 27, 2006

7 comments
O PUTO (parte I - a folha)

Por um qualquer mistério da natureza, a àrvore monumental da praça mantinha presa a si uma única folha. Todas as outras àrvores estavam já vestidas a rigor para a estação. Mesmo aquela o estava, à primeira vista. Não fosse a teimosia de uma folha, que, agarrando-se não se sabe a quê, teimava em desafiar a ordem milenar da cadência outonal.

Se as pessoas daquela praça tivessem aprendido a conviver com os pequenos acontecimentos que os rodeavam, talvez conseguissem ouvir os murmurios daquela folha, e talvez descobrissem o motivo daquela birra. Mas os Homens, daquela e de outras praças, estavam mais concentrados noutros problemas.
Esta situação indignava a pequena folha. Havia semanas que estava votada à solidão. Havia semanas que tinha visto as suas irmãs desprender-se e cair suavemente na calçada da praça. Diáriamente, tinha assistido ao terror das outras folhas ao serem levadas pela vassoura do cantoneiro. E diáriamente ouvia o chilrear espantado dos passaros e aos lamentos indignados da àrvore monumental.
Para ela, era uma questão de princípio! Ninguem lhe havia perguntado se queria ser uma folha perene ou caduca. Porque havia ela de se submeter a uma lei para a qual não havia sido tida nem achada? Assim, teimava em continuar agarrada aquele ramo, aguentando as fortes rajadas de vento que se sentiam ocasionalmente.
Certa manhã, espantou-se com o olhar intrigado de uma velha. Conhecia-a bem, pois esta morava na casa fronteira ao "seu" ramo. Sabia que era viúva, sabia que tinha como única ocupação esperar por algo à porta de casa. Não falava com ninguem, e raramente desviava o olhar da calçada principal que descia para o rio. Hoje, àquela hora da manhã, ali se encontrava, olhos nos olhos, velha e folha. Uma, que se agarrava a uma àrvore teimando em não cair, a outra que se agarrava àquela calçada, como se daí pudesse vir a salvação do destino geral das coisas. Não eram assim tão diferentes uma da outra.

continua...

quarta-feira, outubro 04, 2006

5 comments
Leite a ferver

À medida que o leite ia fervendo no fogão, os vários acontecimentos do dia iam borbulhando na mente de Joana. Tinha sido um dia realmente fora do vulgar. Apesar da maioria desses acontecimentos não terem grande importância, ou melhor grande repercursão na sua vida, outros eram tão distintos, tão importantes, que se assemelhavam à nata que se formava no fervedor. Alias, a expressão "Leite sem nata" que tantas vezes se aplicava na perfeição a Joana, era hoje totalmente sem nexo. A sua vida, num único dia, tinha-se tornado como um leite esquecido ao lume. Aumentando de temperatura, borbulhando, fervendo... Até que, atingindo aquela específica e mágica temperatura de 100 graus(*), começava a estrapolar as fronteiras habitualmente esperadas, vulgo fervedor.
Claro está que Joana teve que, atabalhoadamente, desligar o lume do fogão, pensando se valeria a pena voltar a fazer outra caneca de leite ou se alteraria a sua rotina bebendo leite frio.
Pensando nos acontecimentos do dia, decidiu-se por esta última. E admirou-se, ou melhor espantou-se, com o quanto gostava de leite frio.


(*) - Alterar ou não alterar? Tendo em conta os comentários acerca da temperatura a que o leite ferve, ponderei em alterar o texto, mas, tendo em conta a liberdade de alterar realidades que só a escrita criativa permite, dou-me ao luxo de nada alterar. Quaisquer reclamações, é favor remeter para os cientistas, quimicos e afins. Talvez eles tenham a dignidade de alterar as leis naturais...

segunda-feira, outubro 02, 2006

3 comments
O Chato

Havia uma pequena ruela que sempre me interesou.
Não é que fosse bonita, ou monumental. Na realidade, era uma rua estreita, sem qualquer tipo de chamativo. Não tinha grandes casas em redor, nenhum palacete, nem sequer uma fachada digna desse nome.
Mas interessava-me a forma como se abria abruptamente a meio de uma estrada que conhecia tão bem.
Costumava passar de autocarro em frente a essa ruela todos os dias. Algumas vezes até tinha lá passado a pé. Mas nunca a tinha descido. Não sabia o que me esperava "lá em baixo". Não sabia se tinha saída. Não sabia se lá morava alguém.
Conhecia apenas o apelo que ela murmurava. A principio suave, quase imperceptível. Como uma ideia que estando lá, teima em não se revelar.
Com o tempo foi crescendo. Foi-se tornado uma necessidade. Não sei quando se tornou uma obsessão. Sei que mesmo tendo uma urgencia em descobrir o que essa ruela escondia, teimava em não descê-la. Teimava em contentar-me com o simples mistério. Penso que houve até alturas em que achei que a sua beleza residia nesse mistério.
De tal forma que passei a ter medo de a descer. Aquela simples ruela, passou a ter sobre mim um poder que não pensei possível sequer a um ser humano. Um fascínio, e uma atração que eram incomuns a mim. À minha maneira de ser. Como uma mulher que, de tão fabulosa, de tão magnífica, nem se quer se põe a hipotese de olhar mais que o necessário para se aperceber da sua presença.
Esta teimosia, esta obcessão, ocupou alguns anos da minha meninice. Não havia dia em que não imaginasse as maravilhas que essa ruela esconderia.

Um dia, nem sequer consigo precisar o ano, ou sequer se ainda era menino ou já adolescente, vi uma senhora descer a ruela. Era uma velha, típica daquela zona. Vestida de preto, com um lenço na cabeça. Mas não foi a velha que me despertou atenção. Foi a forma descontraída e quotidiana que as suas ancas tomavam ao descer a ruela. E então pensei, porque não? Porque não haveria eu de gingar o corpo na mesma forma descontraída e quotidiana?
Então, sem grande esforço, ou sem grande sentimento de coragem, ou desinibição, comecei a descer. A forma como o meu corpo baloiçava daria a entender que fazia algo a que estava habituado. Nada na minha maneira de estar, andar ou olhar, denunciava ser aquela a primeira vez que percorria uma rua que me fascinava há tanto tempo. Alias, parecia (pareceu-me) que fazia o simples caminho para casa. Era como se estivesse a fazer algo a que estava predestinado a fazer. Ou como se aquela fosse para mim apenas mais uma simples ruela.
Nem sequer tomei atenção às casas que ladeavam a ruela. Nem ao seu chão empedrado. era como se o importante não fosse a ruela mas sim o caminhar nela.
Em pouco tempo cheguei ao fim. E o que aquela simples ruela descortinou foi algo de fantástico. Um pequeno aglomerado de casa, três, quatro no máximo, compunham um bairro de pescadores. Frente às casas, duas mesas sob um tosco telhado de zinco. Tinha descoberto quem sabe o último reducto daquilo que em tempos tinha sido a minha cidade. Uma cidade de pescadores. Uma alegria imensa cresceu em mim. Não só tinha transposto a barreira da ruela, como tinha encontrado algo de maravilhoso.

Nos dias seguintes, não voltei a descer a ruela. Hoje, quando lá passo, é apenas uma rua como tantas da minha cidade.
6 comments

Nicotina

1999


Não quero voltar a sentir-te,
Não quero ceder.

Disse nunca mais,
E não volto atrás.

Sinto uma vontade
De ceder ao desejo,
De deixar que me leves,
Que me envolvas
No teu abraço.

Mas não vou ceder
Vou ser forte
Para resistir.

Afastar o teu apelo,
Repudiar o teu Chamamento...

Mas sei que não sou capaz.

Sinto-me a cair,
Sinto-me a ceder.

É agora.

Sempre soube
que não podia fugir.

E então cedo
Puxo de um cigarro
Dou um bafo demorado,
E deixo que me envolvas...

Nicotina:

Não vivo sem ti...